CineBH reforça a importância das parcerias e coproduções e celebra efervescência do nosso cinema

Está sendo um ano desafiador para o cinema brasileiro. Apesar das grandes conquistas no exterior, coroadas com prêmios inéditos no Festival em Cannes para “A Vida Invisível”, de Karim Aïnouz, e “Bacurau”, de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, e com a participação de diversos outros títulos em eventos de prestígio mundial, as produções em seu próprio país sofrem bloqueios de verbas, riscos na Ancine, incertezas na economia e uma batalha ideológica que tem como principal alvo a liberdade artística. Este cenário de dúvidas e apreensões rendeu muito papo entre produtores, críticos, diretores e roteiristas ao longo de uma semana na 13a CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte.

Se a conjuntura não é das mais fáceis, por outro lado a efervescência de ideias, projetos, possíveis parcerias e perspectivas para o futuro contaminaram mesas e corredores, especialmente dentro do 10º Brasil CineMundi – International Coproduction Meeting, que trouxe à capital mineira 25 profissionais do audiovisual representando 16 países: Alemanha, Argentina, Benin, Brasil, Canadá, Chile, Colômbia, Cuba, Espanha, Equador, França, Itália, México, Portugal, Suíça e Uruguai. Entre meetings, trocas, debates e painéis, materialização de ideias. Foram 22 projetos nas mesas montadas dentro da Central do Cinema, no Palácio das Artes. Uma novidade deste ano, foram os Laboratórios de Criação em Roteiro, nos quais 60 alunos tiveram orientação de Di Moretti, Rosana Urbes e Aurélio Aragão para iniciarem no ofício de escrita de ficção, documentário, animação e séries de TV.

Enquanto isso, público e profissionais do audiovisual acompanharam ainda a vasta programação de filmes. Foram 43 sessões de cinema, entre pré-estreias e retrospectiva, com 24 longas, 3 médias e 58 curtas-metragens de 11 estados brasileiros e o Distrito Federal  (BA, DF, ES, MG, PB, PE, PR, RJ, RS, SC, SE, SP) e seis países (Argentina, Brasil, Colômbia, EUA, França e Portugal). A seleção da Mostra Contemporânea, feita pelos críticos Francis Vogner dos Reis e Marcelo Miranda, deu atenção a filmes fora dos circuitos mais tradicionais de exibição, inéditos na capital mineira e que de alguma forma refletissem um estado de coisas no mundo complexo e pulsante no qual vivemos.  A forte presença de trabalhos conectados ao horror, antes de programática, foi muito mais de contexto. “O gênero sempre é uma saída para que cineastas falem sobre onde e como vivem, é uma maneira de usar os códigos já reconhecidos para refletir ou alegorizar estados de espírito”, afirma Francis.

Por essa linha, títulos como “A Noite Amarela”, da Paraíba, e “Nightmare Cinema”, dos EUA, lidavam de maneiras muito distintas com o desconforto e o mal-estar de tempos marcados por violência de Estado e dúvidas sobre o futuro. Mesmo documentários como o colombiano “A Vingança de Jairo” e o francês “Danças Macabras, Esqueletos e Outras Fantasias” se utilizaram do imaginário de um passado de perdas e apagamentos para desenvolver discursos que tocam no político do século 21. “Não dá para escamotear as afetações dos artistas com o que vem acontecendo em praticamente todo país desenvolvido. As políticas de viés direitista estão tomando conta e isso atinge diretamente a criação. Antes de ser discursivo, o cinema visto na CineBH este ano foi impactantes e, em alguns casos, desconfortável, porque são parte desse cenário geopolítico mundial, independente de seus gêneros”, completa Marcelo.

PELO MUNDO

Sob a temática “A internacionalização do cinema brasileiro e os desafios para o futuro”, a mostra trouxe para a conversa a contradição entre o sucesso das produções locais fora do país e a dificuldade de serem legitimadas dentro de seu próprio território e mercado. Eduardo Valente, crítico, curador e ex-assessor internacional da Ancine, relembrou que, nos anos 1990, o Brasil teve um boom de presenças marcantes no exterior, com as duas indicações ao Oscar de filme estrangeiro (“O Quatrilho” em 1996 e “O que é isso, Companheiro?” em 1997). Mas elas teriam sido casos isolados, alertou ele. “Foram circunstâncias bem específicas que fizeram esses filmes estarem lá. Eles não faziam parte de um contexto que pudesse ser sentido como favorável a uma maior inserção do cinema brasileiro internacionalmente”, diz Valente.

Por outro lado, e tendo a experiência de ter trabalhado diretamente com a presença mundial da produção nacional, Valente acredita que o atual cenário é resultado de anos de políticas públicas, trabalho árduo dos cineastas e reconhecimento crescente do próprio ambiente de festivais e de mercado que permitiu, por exemplo, em dois anos seguidos, 12 títulos brasileiros estarem no Festival de Berlim, ou dois ganhadores de prêmios em Cannes. “Um filme como ‘Bacurau’ não é um fenômeno isolado, ele é fruto de uma trajetória. Não é saudável que uma cinematografia viva de fenômenos, daí a importância de ações continuadas que valorizem e aprimorem esses mecanismos. E isso, hoje, está em risco”.

Para o produtor Rodrigo Teixeira, da RT Features, que esteve na CineBH para participar do debate sobre a temática e a exibição de “A Vida Invisível”, o momento é delicado e demanda muito cuidado e atenção. Ele se encontrou pessoalmente com representantes do Ministério da Cidadania e não se sentiu seguro de que haja caminhos positivos para a produção audiovisual brasileira por parte do atual governo. Rodrigo acredita que uma consequência disso a curto e médio prazo será a menor presença de filmes do país em festivais de 2020. “Parte da produção está paralisada, por falta de repasse de verbas, e muitos filmes não têm condições de serem feitos sem esse incentivo”, reforça.

A produtora mineira Filmes de Plástico, homenageada pela 13a CineBH por conta de seus dez anos de atuação, representou no evento o exemplo de profissionais que vêm mantendo regularidade na realização e na presença internacional e que se sentem apreensivos com os rumos do país. “Temos muitos projetos que provavelmente não vão ter a simpatia desse governo, o que pode fazer com que tenhamos que buscar outras formas de viabilizar. Temos certeza é de que não nos faltam ideias nem a convicção do que queremos produzir”, aponta Gabriel Martins, um dos integrantes do quarteto, formado ainda por Maurílio MartinsThiago Macêdo Correia e André Novais Oliveira.

Uma das novidades para a Filmes de Plástico é a parceria com a RT Features, anunciada na abertura da Mostra. Junto com Rodrigo Teixeira, a produtora vai realizar o próximo longa-metragem “Vicentina, pede desculpas” a ser dirigido por Gabriel no ano que vem.

PELA POLÍTICA

O cenário político também apareceu nas sessões da mostra Diálogos Históricos, que esse ano contou com as masterclasses do pesquisador Hernani Heffner. Em conversas diárias com os espectadores, ele analisou a trinca “República dos Assassinos”“Inquietações de uma Mulher Casada” e “Maldita Coincidência”, todos sob o viés de estarem completando 40 anos desde o lançamento em 1979 e serem filmes menos canônicos do cinema brasileiro que refletia a ressaca da ditadura militar prestes a terminar. “O que se percebe em todos eles é a sensação de total fracasso de quem se voltou contra o golpe civil-militar de 1964. Vemos personagens em diversas abordagens, classes sociais e relações entre si que transmitem muito fortemente o sentimento de derrota e de ‘bode’ que se abateu sob certo núcleo de indivíduos no Brasil daquele momento”, diz Hernani.

Se falamos de país e mundo, inevitavelmente também falamos de cidade, e a CineBH tem um recorte específico para colocar Belo Horizonte diretamente nas conversas. Consolidada como espaço de visibilidade e autoralidade, a mostra A Cidade em Movimento, com curadoria da pesquisadora e ativista Paula Kimo, contou com 24 curtas e um média-metragem em cinco sessões temáticas e rodas de conversa voltadas ao debate sobre a relação de corpos e pessoas dentro do cenário urbano e apressado da grande metrópole.

“São fluxos, memórias, espaços e conversas de uma Belo Horizonte que fala do seu cotidiano e que relaciona cinema e política numa discussão sobre potências e fragilidades”, afirma Paula. Entre as participantes das discussões dos filmes, estava a advogada Maria Caroline, que apontou a importância de não só pensar nas construções formais do que se via, mas “discutir as mulheres trabalhadoras e como elas se inserem no cenário da nossa cidade”. Assuntos como sexualidade, violência e machismo também marcaram quem acompanhou o recorte.

RUMO AO FUTURO

Em seu 10o ano de realização, o Brasil CineMundi reafirmou seu papel como evento de mercado do cinema brasileiro, fórum de cooperação e intercâmbio, de negócios e desenvolvimento de projetos.  Além de estar consolidado como ambiente de mercado, o evento promove o Programa de Formação Audiovisual. Foram 19 atividades formativas – debates, painéis, workshops, masterclasses visando a profissionalização e capacitação dos participantes para inserção no mercado audiovisual com mais estofo e conhecimento, desde o entendimento de processos de curadoria – como o apresentado pela programadora Janaína Oliveira, que tratou da importância de olhares descolonizados para produções periféricas ou à margem do que se convencionou chamar de “bom cinema” – até fundos e programas de incentivo em várias partes do mundo, como a incubadora Projeto Paradiso (SP), o Torino Film Lab (Itália), o DocMontevideo/DocSP (Uruguai) e o IDFA (Equador).

“Trata-se de um intercâmbio fundamental entre profissionais, para que se busquem alternativas de coprodução especialmente num cenário de indefinição e crise. A insegurança do atual momento estimula que se busquem alternativas para a realização dos projetos que vêm aqui”, destaca Paulo de Carvalho, colaborar do Brasil CineMundi.

Que o audiovisual brasileiro vive seu momento mais complicado desde o começo dos anos 1990, praticamente toda a classe percebeu e convive com isso. Entre dúvidas e apreensões, o momento é de reflexão, de saber onde pisar, de não cair nas armadilhas dos factoides e de acreditar que o cinema há de ser muito maior do que o instantâneo de um momento sombrio. A CineBH faz a sua parte: mostra o cinema brasileiro para o mundo e acredita em cada um dos projetos que por ele passam, incentivando parcerias e harmonias e aguardando os frutos que certamente irão coroar as telas daqui e lá de fora.

Foto Leo Lara/Universo Produção

 

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