Filme brasileiro aborda racismo e é o único da América Latina no Festival de Cannes
Por Janaina Pereira
Inicialmente programado para maio, e depois adiado para julho, o Festival de Cannes não vai acontecer de forma presencial este ano – pelo menos não na Croisette, onde é realizado anualmente desde 1946. Por causa da pandemia provocada pelo novo coronavírus, os filmes selecionados para o evento serão exibidos em sessões especiais em festivais que vão acontecer no segundo semestre. Foram 56 produções que receberam a chancela ‘Festival de Cannes 2020’, entre elas Casa de Antiguidades, de João Paulo Miranda Maria. Primeiro longa-metragem do cineasta, o filme brasileiro é o único representante da América Latina, e estaria presente na competição oficial de Cannes, onde concorreria a Palma de Ouro em um júri presidido pelo cineasta americano Spike Lee.
“Por um lado é frustrante não ter o Festival de Cannes esse ano. Quando soube que fui selecionado, mas o Festival não aconteceria, fiquei feliz e, ao mesmo tempo, aliviado. Acho que não é o momento para termos um festival de forma presencial, com as pessoas tendo que usar máscaras e com o distanciamento social. Ainda não podemos comemorar o fim dessa pandemia, então temos que ter cautela. Mesmo assim a chancela de Cannes é muito importante, especialmente porque é meu primeiro filme”, revelou João Paulo em entrevista exclusiva ao Prodview.
Atualmente morando com a esposa e os dois filhos na França – para onde se mudou em março do ano passado, para fazer a pós-produção de Casa de Antiguidades – o diretor está na mira de Cannes desde 2015, quando participou da Semana da Crítica com seu curta-metragem Command Action (realizado com a ajuda da venda de rifas). No ano seguinte, ele ganhou a Menção Especial do Júri com o curta A Moça que Dançou com o Diabo. E em 2017 participou do Festival de Veneza com outro curta, Meninas Formicidas. “Desde que comecei não segui tendências, e sempre procurei ser pessoal. Isso chamou a atenção nesses festivais. Acho que a câmera filma o que tem na frente dela, mas também o que tem atrás. Então os meus filmes são muito pessoais”, revela.
Racismo e intolerância
A ideia para o roteiro de Casa de Antiguidades surgiu em 2015, a partir de um sonho que o diretor teve. “Sonhei com um homem que entrava em uma casa que parecia um antiquário. A ideia ficou na minha cabeça e, quando participei da Semana da Crítica em Cannes, e me perguntavam se eu tinha algum roteiro para um longa, disse que sim. Porque eu sabia que esse homem era o personagem do meu primeiro longa”.
Protagonizado por Antônio Pitanga, o filme conta a história de Cristóvão, que sai do interior de Goiás para trabalhar em uma colônia no sul do Brasil. Lá, entre pessoas extremamente conservadoras, ele encontra um casa abandonada, cheia de antiguidades, que faz com que se lembre de seu passado, e que desperta o desejo de enfrentar a população local. “É um momento de pós-crise, de uma sociedade separada. De um lado estão os conservadores e, do outro, os que vivem à margem da sociedade. Então chega esse personagem cheio de defeitos e conflitos, que tem que lidar com um grupo intolerante. O filme parece que se passa nos anos 1970, mas não é um filme de época. Na verdade ele poderia ser o momento em que vivemos agora, e discute vários temas importantes como o racismo”.
João Paulo Miranda Maria acrescenta que, embora tenha pensado em Antônio Pitanga para o papel de Cristóvão desde o início, no roteiro ele não descreve o personagem como negro e idoso, o que foi uma surpresa para os produtores – o filme é uma coprodução com a França. “Quando escolhi o Pitanga, os produtores estranharam. Mas ele faz parte da história do cinema brasileiro, esteve presente em Cannes com O Pagador de Promessas, nosso único filme vencedor da Palma de Ouro, e tem a força que o personagem precisava. Tinha que ser ele”.
Estreia nos cinemas
João Paulo ainda não sabe em quais festivais Casa de Antiguidades será apresentado, mas cita Toronto, Telluride, Nova York e San Sebastian como alguns possíveis eventos que poderão ver o filme . “Eu quero que seja apresentado ao público e a imprensa em salas de cinema. Acho importante que a estreia seja assim. E espero que tenha distribuição no Brasil ano que vem. Depois podemos exibi-lo online, para todo mundo ver”.
Ele faz uma comparação para mostrar a importância dos filmes serem exibidos nos cinemas antes de irem para o streaming. “É como ver a Monalisa pelo computador e ver pessoalmente no Louvre. Nada se compara a estar diante dela no museu. No cinema é igual, o impacto da obra original nas telas é diferente”.
Antes de se mudar para a França, João Paulo ainda lecionava em uma universidade de Piracicaba. Agora, está se dedicando a sua carreira de cineasta, sem pretensões de retornar ao Brasil. “Independente da pandemia, na França tem mais mercado e estrutura. O atual Governo brasileiro desfavorece a cultura, então está difícil voltar ao Brasil neste momento. É preciso perceber que a cultura é um espelho da sociedade. Ela influencia a educação, constrói um caráter. A arte não é apenas para distrair, ela traz reflexão, e faz a gente repensar nossos valores”, conclui.