18a CineOP: Entrega do plano de preservação, viagem pela música preta, resgates históricos e desafios na educação audiovisual

Se 2022 foi o ano do retorno ao presencial e da retomada dos encontros, em 2023 a CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto celebrou a volta do Ministério da Cultura e de um vasto leque de políticas públicas anunciadas para os setores de preservação e educação audiovisual. Após seis anos de dificuldades e escassez, fruto do descaso dos governos anteriores com um setor tão estratégico e economicamente viável como a cultura, a 18ª edição da CineOP se mostrou um misto de alívio pelos novos caminhos possíveis e de apreensão positiva com as perspectivas que se apresentaram nos seis dias de evento.

Sete anos após o lançamento do Plano Nacional de Preservação Audiovisual, a 18ª CineOP sediou e promoveu intensas reuniões e encontros do setor da preservação e do audiovisual visando a atualização do Plano de Preservação numa construção coletiva que tornou possível a entrega oficial ao Ministério da Cultura/Secretaria do Audiovisual, no encerramento do evento. “Esta entrega representa um marco histórico para a CineOP, enquanto Fórum eleito para ações, diretrizes e encaminhamentos no campo da preservação e também para o setor da preservação que anseia e trabalha para que a preservação tenha uma Política de Estado representativa do setor”, destaca Raquel Hallak, coordenadora geral da CineOP. “Isso aqui é fruto de muita luta, de acreditarmos que é possível. Golpe nenhum ia nos fazer parar”, exaltou Laura Bezerra, pesquisadora da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). “É um momento de comemorar e de reconhecer a existência de uma Sav (Secretaria do Audiovisual) atenta e preocupada com a preservação e com os caminhos a serem construídos”.

SAV ANUNCIA NOTICIAS HISTÓRICAS PARA O SETOR DA PRESERVAÇÃO

A passagem pela CineOP de Joelma Gonzaga (secretária do Audiovisual) e de Daniela Fernandes (diretora de Preservação e Difusão Audiovisual da Sav) garantiu uma interlocução direta com o setor e a explicitação de suas necessidades.

A pesquisadora Débora Butruce, atual presidente da ABPA, apontou que o momento é especialmente delicado dentro do cenário difícil da preservação, justamente pelos obstáculos e desafios que acervos, museus, arquivos e demais instituições públicas e privadas enfrentam constantemente na manutenção de seus conteúdos. “Há carência de recursos estáveis e de planejamento de longo prazo no setor, o que são coisas essenciais”, apontou.

Butruce enumerou outras dificuldades que ela espera entrarem nas definições das políticas públicas. “A legislação é inadequada, há falta de incentivo a publicações e de recursos humanos e os investimentos financeiros são insuficientes e instáveis”. Além dessas questões materiais e políticas, a presidente da ABPA demonstrou preocupação com os acervos digitais, algo anualmente discutido na CineOP por sua proliferação tão grande quanto a dificuldade de armazenamento, localização e organização. “Se com as películas podemos ter lacunas, com o digital vamos ter crateras”, comparou.

Em termos de anúncio, a Secretaria do Audiovisual disse que a preservação é considerada uma prioridade na atual gestão e que uma série de ações serão lançadas nos próximos meses que poderão ser bem aproveitadas pelo setor. “É urgente traçar políticas estruturantes para que a preservação seja tratada com a importância que ela tem”, afirmou Joelma Gonzaga. Entre as novidades, estão suplementação de 70% do valor do contrato de gestão da Cinemateca Brasileira; regulamentação do Plano Nacional de Preservação Audiovisual, finalizado na CineOP; instituição da Rede Nacional de Acervos e Arquivos Audiovisuais; levantamento de equipamentos culturais e seus acervos audiovisuais; e inserção da preservação na Lei Paulo Gustavo.

PRESENÇA PRETA

Na Temática Histórica, as discussões sobre “MPB – Música Preta no Brasil” foram parte essencial dos debates no Centro de Convenções da UFOP, coroados pela presença do ator, cantor e homenageado da Mostra este ano, o lendário Tony Tornado. Aos 93 anos, ele se tornou figura marcante nos corredores e sessões do evento, com sua simpatia, generosidade, encanto e toda a memória de uma vida dedicada à arte e repleta das dificuldades típicas de um precursor da presença preta no cenário cultural brasileiro.

“Eu sou artista, né, o artista não sabe parar, ele vive numa montanha-russa, mas é isso que a gente faz mesmo”, disse. Tornado esteve representado nas telas da CineOP por um dos clássicos do cinema brasileiro, “Quilombo” (Carlos Diegues, 1984), no qual interpreta o mítico personagem Ganga Zumba. Outros títulos exibidos no recorte histórico da Mostra, como “Alma no Olho” (Zózimo Bulbul, 1974) e “Uma Nêga Chamada Tereza” (Fernando Coni Campos, 1973), além dos contemporâneos “Diálogos dom Ruth de Souza” (Juliana Vicente, 2022) e “Baile Soul” (Cavi Borges, 2023), e mesmo o “case” de restauração de “A Rainha Diaba” (Antônio Carlos da Fontoura, 1974), fizeram aparecer as relações levantadas pela curadoria entre a vivência preta no Brasil e seu caldo cultural ascendendo como criação e expressão ao longo das décadas.

“O cinema negro se apropria e se constrói na transposição e dissonância”, disse a pesquisadora e crítica de cinema Ana Júlia Silvino. Seu raciocínio aponta que a recente maior visibilidade de uma produção preta vem muito por conta da invisibilidade, ou seja, de um apagamento anterior reforçado por racismo e hegemonia branca nas instâncias de decisão. Por isso, segundo Ana Julia, a reapropriação de imaginários em torno da experiência de ser negro no Brasil, quando transposta ao audiovisual, tende a vir na base de grandes saturações sonoras e visuais para que se chegue a uma outra forma de fabulação. “O instrumento que permite esse tipo de fabulação é a montagem”, definiu ela. “Mais que pensar o cinema como invenção da narrativa através de seu tema, é importante pensar em como uma imagem ou um som se desloca em relação a outra imagem e outro som. O cinema negro em especial está sempre destituindo alguma imagem de sua construção convencional para dar a ela outros sentidos”.

A questão “música preta no brasil” versus “música preta brasileira” se mostrou deliberada numa fala da curadora Tatiana Carvalho Costa, na qual ela exaltou o som de John Coltrane no curta-metragem “Alma no Olho” e reverberou diretamente nas discussões levantadas em “Baile Soul”. Ou seja, que a música preta em especial norte-americana se integrou ao imaginário preto brasileiro, pelos idos dos anos 1970 (ainda que sempre estivesse presente de várias formas) e permitiu a expansão para identidades próprias, geradas e construídas dentro do país – e das quais a trajetória múltipla de alguém como Tony Tornado é exemplar.

Esse identitarismo, orgânico e vivencial, apareceu também em projetos e filmes mostrados na Temática Educação, que adotou o eixo “Cinema e educação digital: deslocamentos” e apresentou algumas experiências de relação entre câmera, olhar e terra. Um dos mostrados foi o Cinema no Brejo – Laboratório Rural de Formação e Experimentação Audiovisual, criado em 2018 a partir da realização de um cineclube na região rural do Maciço de Baturité, no Ceará. O pesquisador e formador Leonardo Câmara contou que o objetivo é de potencializar a relação entre jovens estudantes locais com as histórias, memórias, saberes e fazeres que habitam o imaginário e o cotidiano de seus territórios. Rios, estradas, casas, campos e tudo que chamasse atenção, nos mínimos detalhes, foram se tornando material filmado às crianças.

Na relação com as novas tecnologias, o XV Fórum da Rede Kino destacou a importância de uma Política Nacional de Educação Digital que tenha o audiovisual como eixo estruturante. Foi muito apontado, nos Encontros da Educação, que a defasagem técnica ainda é um desafio para a inclusão de alunos de redes escolares mais humildes e que isso precisa ser pensado no âmbito das políticas públicas. “É preciso uma educação digital crítica alinhada a processos criadores e inventivos de mundos mais justos, menos desiguais e menos violentos”, destacaram os professores na Carta de Ouro Preto.

Em todas essas frentes – da ancestralidade negra na cultura brasileira à valorização histórica das nossas expressões audiovisuais, do aprendizado com novas tecnologias ao entendimento de que é preciso entender o impacto dessas tecnologias nas relações humanas de hoje e de amanhã –, a 18a CineOP chega à maioridade completando um verdadeiro ciclo. A homologação do Plano Nacional de Preservação é o ápice dessa caminhada, assim como encarar o passado e os constrangimentos brasileiros hoje entendidos e enfrentados em seus contextos. Em 2024 a caminhada recomeça, certamente numa nova fase, provavelmente de novos e estimulantes desafios.

 

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