Dentro e fora das telas, o debate político se torna o principal foco do Festival de Cartagena

*Por Fernanda Prats, Colômbia (pratserie.com)

A 59ª edição do Festival de Cinema de Cartagena das Índias, conhecido como FICCI, é marcada por intensas discussões sobre as políticas do setor cinematográfico. Mais do que isso, os filmes que apresentam temas relativos a política engajam o público do evento em debates.

O festival de cinema que acaba de acontecer na bela cidade colombiana de Cartagena das Índias é o mais antigo da América Latina. Sua 59ª edição internacional, promovida de 6 a 11 de março de 2019, contou com uma extensa agenda de lançamentos e projeções especiais – incluindo uma mostra de filmes brasileiros e sessões de cinema ao ar livre.

A programação ainda contou com uma exposição interativa de realidade virtual, diversos eventos acadêmicos e workshops voltados para a indústria cinematográfica, reuniões de ‘pitch’ para apresentação de projetos a possíveis financiadores e conversas com grandes nomes do cinema colombiano e internacional, como Victor Gaviria e Ethan Cohen.

Espaço no centro de Cartagena onde foram projetados filmes clássicos ao ar livre (Foto: Fernanda)

Destaques do Festival de Cinema de Cartagena das Índias

Das vaias à vice-presidente da Colômbia, na cerimônia de abertura, aos muitos aplausos para os diretores que abordaram temas políticos, o 59º FICCI promoveu um polêmico debate sobre as novas perspectivas do cinema e o contexto atual da América Latina.

A sonora crítica do público colombiano refletiu a incerteza geral quanto às promessas do governo com relação à chamada ‘economia laranja’ (voltada à produção cultural). E, de fato, as poucas decisões tomadas até agora não corresponderam ao desejado fomento ao cinema e foram vistas como um retrocesso pelos cineastas – que se sentem ameaçados por possibilidades de censura, revisionismo histórico e imposições de retorno financeiro em suas obras.

O diretor colombiano Rúben Mendoza pode até ter provocado reações mornas com seu longa Niña Errante, mas incendiou a plateia ao alfinetar o programa governamental: “O cinema tem que existir como uma forma de expressão de pensamento de uma sociedade”.

Discurso polemico de Ruben Mendoza na abertura do FICCI (Foto: Fernanda)

Ao longo do festival, a discussão política dominou a maioria das conversas entre cineastas e público programadas para após a exibição de seus filmes. Essa troca de ideias não se restringiu à legislação cultural e tocou em assuntos como corrupção, desarmamento e feminismo. Por exemplo, o diretor brasileiro Cris Azzi prestou uma homenagem à Marielle Franco e discorreu sobre as mudanças criativas que a situação financeira do cinema brasileiro vem provocando.

Em uma discreta nota, a organização do FICCI se posicionou contrariamente a esse tipo de iniciativa: “Não compactuamos com o uso deste espaço para promover agendas que ofusquem o protagonismo e as oportunidades de encontro que esse festival propicia para benefício de toda a comunidade cinematográfica”.

Porém, ainda que de forma um tanto desconfortável para os organizadores, essa inquietação confirmou as expectativas da diretora geral do festival, Lina Rodriguez: “Nesta edição o FICCI muda de pele, migra para um conceito horizontal que celebra o cinema integrando sua programação por igual, promovendo a reflexão e assumindo com valentia essa aposta”.

Lina definiu o objetivo do festival como “a consolidação de um espaço de circulação alternativo para o cinema” e reforçou: “Muitos focam na produção, distribuição e exibição, que são vitais [para o cinema], mas poucos apostam nos caminhos laterais para formar novas audiências. E isso é que estamos fazendo. Acreditamos que a aposta no cinema deva se centrar no lugar mais complexo da cadeia que é, ao mesmo tempo, o mais vital: o público”.

A reação das plateias, portanto, pode ser encarada como um indício de sucesso do festival. Afinal, isso expande o foco para representar – também – os anseios dos cineastas e do público.

Os números do 59º FICCI

A edição de 2019 do Festival de Cinema de Cartagena das Índias estimulou a participação de um grande público de cinéfilos e curiosos, já que a maioria das sessões de cinema permitia a entrada de interessados até que o limite das salas de projeção fosse atingido (após o ingresso de patrocinadores e profissionais credenciados para a cobertura do evento).

Segundo o diretor artístico do FICCI, Felipe Aljure, ‘nossos curadores nacionais e internacionais revisaram quase 3000 filmes até chegarmos aos 200 títulos de 54 países desta edição”. A seleção conta com 14 estreias mundiais, 50 filmes colombianos e outros 46 filmes latino-americanos.

As exibições foram organizadas em mostras especiais, com filmes de ficção, animações e documentários colombianos e internacionais. Também aconteceram inúmeros workshops, tributos, bate-papos com cineastas e encontros com especialistas do setor para discutir as transformações de indústria cinematográfica.

Somando tudo isso às instalações de Realidade Virtual abertas ao público, e uma série de ‘master classes’ sobre a inclusão de novas tecnologias na cinematografia, a organização computa mais de 100 eventos paralelos às sessões de cinema.

Uma vitória brasileira

Na abertura do 59º FICCI. o curador chefe, Juan Carvajal apontou entre as novidades a mostra batizada como As Pessoas que Fazem Cinema e o que o Cinema Faz às Pessoas, com filmes em que os diretores protagonizam as próprias histórias.

Esse enfoque resultou na qualificação do longa brasileiro Meu Nome é Daniel, de Daniel Gonçalves, para concorrer ao Oscar 2020. Outros filmes nacionais foram apresentados no festival, tanto na Mostra Brasil quanto em sessões relativas a temas como Adolescência, Migração e Mestiçagem.

Confira valor das premiações do festival de cinema de Cartagena das Índias em 2019

Em sua 59º edição, o FICCI contemplou uma série de projetos com incentivos financeiros, além de sediar a entrega dos prêmios Índia Catalina para os filmes concorrentes. A organização do festival computa um total de 530 milhões de pesos em prêmios (equivalentes a 170 mil dólares ao câmbio atual). Estas são os valores atribuídos às principais premiações:

  • Prêmios WIP (Work in Progress) totalizando 43 mil dólares para projetos de longa e curta metragem colombianos e latino-americanos;
  • Prêmios de 10 mil pesos colombianos (cerca de 3 mil dólares cada) para filmes de colombianos na categoria ficção – mostra Ficciones de Aqui;
  • Prêmios de 10 mil pesos colombianos (cerca de 3 mil dólares cada) para filmes de colombianos na categoria documentário – mostra Documentes Echo em Casa;
  • Prêmios de 10 mil pesos colombianos (cerca de 3 mil dólares cada) para séries colombianas realizadas em HD para apresentação em TV e meios digitais.  

Além disso, o Encontro Internacional de Produtores entregou prêmios financeiros de incentivo a projetos filmes latino-americanos:

  • Retiro, do produtor colombiano Steven Morales foi considerado o melhor projeto de longa-metragem e recebeu 8 mil euros da entidade francesa CNC Centre National du Cinéma et de I´Image Animée).
  • Manzana de Luces, do produtor argentino Francisco Novick recebeu um prêmio para serviços de pós-produção do Centro Ático da Universidade Javeriana, da Colômbia, representando um valor aproximado de 56 mil pesos colombianos (equivalentes a 18 mil dólares).

 

Premiados

Premiação de público

Monos, de Alejandro Landes (ficção).

La Paz, de Tomás Pinzón Lucena (documentário).

 

Reconhecimento de trajetória

Marta Rodrigues (documentarista e antropóloga colombiana).

 

Qualificação para o Oscar

Meu Nome é Daniel, de Daniel Gonçalves (documentário).

La última marcha, de Ivo Aichenbaum (curta-metragem).

 

Qualificação para o BAM  

Sandra, do produtor colombiano José Manuel Duque foi qualificado diretamente para a seção de projetos do evento Bogotá Audiovisual Market.

 

Prêmios WIP

Para Matar un Amigo, de Luis Alberto Restrepo

El Segundo Entierro de Alejandrino, de Raúl Soto.

Como el Cielo Después de Llover, de Mercedes Gaviria.

El Secreto del Rastro, de Reyson Velásquez.

Ontem Havia Coisas Estranhas no Céu, de Bruno Risas.

 

Premiados na categoria Ficciones de Aqui (ficção)

Monos, Alejandro Landes.

Silencios, Beatriz Seignemartini.

Niña Errante, Rúben Mendoza.

Los Días de La Ballena, Catalina Arroyave.

 

Premiados na categoria Echo em Casa (documentários)

La Venganza de Jairo, Simón Hernández.

La Fortaleza, Andrés Torres.

Homo Botanicus, Guillermo Quintero.

Lapu, César Alejandro Jaimes e Juan Pablo Polanco.

La Paz, Tomás Pinzón Lucena.

 

Cortizona (filmes realizados por estudantes colombianos)

Todos los Peces que Maté, de Sara Nanclares.

Para Matar un Amigo, Luis Alberto Restrepo.

Ruido, de Carla Melo.

San Patacón, de Rodolfo Franco.

Jahiloom (Wild Game), de Jerónimo Sarmiento.

 

Premiação Taller Documental (diferentes instituições, inclusive a brasileira DOC SP)

La Realidad de La Vida, de Frank Benítez (Centro Ático)

Anhel 69, de Theo Montoya (SANFIC)

Soy Laura, de Angelica Cervera (DOCSP DOC LAB)

 

O impacto social do FICCI

Além de promover a cidade de Cartagena das índias como destino especializado em cinema e elevar os números do turismo na região durante o festival, o FICCI tem um projeto móvel com enfoque comunitário na região de Bolívar, na Colômbia, da qual Cartagena faz parte.

Nos últimos 3 anos, o FICCI Móvel tem realizado projeções nos 46 municípios e 36 vilarejos da região. A estimativa é de chegar a 110.000 espectadores, gerando empregos e oportunidades de criar transformações positivas através do cinema.

Essa aposta na formação de público só tem a ganhar com um melhor entendimento da resposta das plateias no 59º FICCI.

Mais do que a livre expressão de quem produz e movimenta a indústria cinematográfica no país, o debate das políticas culturais é de extrema importância para toda a América Latina no momento atual.

Leia também:

Documentário brasileiro é qualificado para o Oscar 2020

Leave comment

Your email address will not be published. Required fields are marked with *.