19 CineOP: animação, IA e educação, encontro reflete perspectivas rumo ao futuro
Em 2024 a CineOP – Mostra de Cinema de Ouro Preto começou justamente num dia 19 de junho, anualmente celebrado como Dia do Cinema Brasileiro, e em sua 19ª edição. Pareceu o presságio de um evento marcante. Ao mesmo tempo em que buscou na perspectiva histórica da animação brasileira algumas de suas grandes inspirações – celebrando uma linguagem que o audiovisual do país desenvolve desde o começo do século 20 –, a Mostra realizou o feito inédito de promover debates sobre a utilização de inteligência artificial no setor do audiovisual e de avançar nas definições de um Plano Nacional de Cinema nas Escolas. O evento, assim, mesclou seus três eixos temáticos de História, Preservação e Educação através de filmes e discussões urgentes e necessárias.
Convidada para abrir um dos Encontros de Arquivo, a ministra do Supremo Tribunal Federal Cármen Lúcia fez uma definição adequada do efeito da cultura – e da própria filosofia da CineOP: “Quando acontece um golpe de Estado, a primeira coisa que é eliminada é a cultura. Porque a pessoa que tem acesso aos bens culturais tem condições de ser mais livre, e as ditaduras não gostam de liberdade. Os Titãs têm razão quando cantam que não queremos só comida, nós queremos comida, diversão e arte, nós queremos saída para qualquer parte”.
A escolha da curadoria da Temática Histórica de destacar o cinema de animação refletiu a importância e o crescimento dessa linguagem no cenário audiovisual nacional. Diversos profissionais, realizadores, pesquisadoras e entusiastas da animação participaram dos vários debates, sessões e rodas de conversa ao longo do evento. Para Adriana Pinto, professora e animadora, o setor é uma indústria criativa e coletiva e assim deve ser compreendida inclusive dentro da luta por políticas públicas. “A animação é um campo que exige colaboração intensa e é fundamental para a formação de novas gerações de cineastas”, frisou ela.
Adriana apontou a necessidade de recursos, editais e incentivos específicos à animação, tanto por motivos técnicos quanto cronológicos, já que se trata de um tipo de criação que pode levar anos para ser concluído. O professor Fábio Yamaji, cocurador dessa edição, completa que “a animatografia no país sempre foi muito diversa” e que ela guarda elementos muito particulares, especialmente pela total liberdade de criação, em termos inclusive material e técnica, e o quanto isso demanda um tempo distinto, mesmo quando inserido num processo de criação industrial.
Um dos assuntos mais acalorados da 19ª CineOP, que vem tomando espaço constante no cotidiano dos agentes do audiovisual no país, foi a regulamentação do vídeo sob demanda (VOD, “video on demand”), que segue com dois projetos de lei em tramitação no Congresso Nacional. Participantes do evento defenderam a necessidade de uma união da classe audiovisual para enfrentar os desafios impostos pelas grandes plataformas de distribuição digital, que dominam o mercado em termos econômicos e também imaginários. A regulamentação é vista pela classe de profissionais como crucial para garantir uma distribuição mais justa e equitativa dos conteúdos produzidos dentro no país, seja na difusão ou na defesa de direitos autorais e patrimoniais.
Para Paulo Alcoforado, diretor da Ancine (Agência Nacional de Cinema), as grandes plataformas estão entre as maiores empresas do mundo, responsáveis por faturamentos milionários. “Como qualquer setor, ele precisa de algum tipo de regulação no Brasil”, disse. “E regular o VOD implica em organização e conformação de todo um ambiente profissional, ainda mais por o Brasil ser um dos maiores mercados em consumo de streaming no planeta”. Tatiana Carvalho Costa, professora e presidente da Apan (Associação de Profissionais Negros), defendeu que a presença mais equânime de diversidades no audiovisual distribuído em plataformas é uma forma de construção de memória, essencial para uma valorização dos profissionais e de seus trabalhos. “Por isso é preciso defender uma legislação que favoreça a democratização do acesso e produção de conteúdo nessas plataformas com algum tipo de equilíbrio”, afirmou.
Outro tema de destaque na CineOP e pela primeira vez discutido dentro de um contexto do audiovisual foi o uso de tecnologias de inteligência artificial nos trabalhos de produção e de preservação de acervos. Alguns debates abordaram as potencialidades e os desafios que a IA traz para a área, inclusive os desafios em termos práticos, tecnológicos, éticos e ambientais.
Para o pesquisador e cineasta Almir Almas, há necessidade urgente de a comunidade acadêmica e profissional se posicionar de maneira mais proativa frente às tecnologias de IA. “A inteligência artificial coloca um desafio enorme. Estamos, enquanto estudiosos, pesquisadores, educadores e arquivistas, atrasados em relação a isso, o que nos coloca numa posição muito frágil, que é a de ser controlado por ela, quando a gente devia estar na ponta, no controle”, afirmou Almas. “É preciso entender isso como uma realidade de impacto contínuo”.
A pesquisadora Esther Hamburger apontou a dualidade da IA como ferramenta de potencialização e de risco. “Pensar que ela pode ser um sistema de classificação mais potente e que tem também uma vertente generativa que ainda é muito nova e que está aí para nossas pesquisas é essencial”, disse Hamburger. Ela enfatizou a importância de controlar os processos de captação de dados e os algoritmos para evitar que eles se tornem ferramentas opressoras, especialmente no contexto das plataformas de streaming e de outras mídias digitais. Alguns casos foram apresentados no evento, como o arquivo da Rede Globo, que se utiliza de IA em algumas buscas de imagens, e a O2 Filmes, que está restaurando o filme “Cidade de Deus” (Fernando Meirelles, 2002) utilizando inteligência artificial na recuperação de algumas imagens.
No eixo da Temática Educação, a Lei Federal 13.006, promulgada em 2014, várias vezes debatida na CineOP e que determina a exibição de duas horas de cinema brasileiro ao mês nas escolas de educação básica dentro de uma carga curricular complementar. A professora Maria Angélica dos Santos, responsável pelo programa de alfabetização audiovisual da Cinemateca Capitólio (RS), lembrou que no mesmo ano da entrada da lei em vigor foi criado o grupo de trabalho Cinema-Escola, com sete representantes da sociedade civil e membros do Ministério da Cultura e da Educação. “Houve dificuldades de implementação, então sentimos que a lei não pegou”, lamentou ela.
Maria Angélica anunciou que o projeto dos profissionais de educação que se utilizam de audiovisual, agora, é mais ambicioso e vai se desenvolver num Plano Nacional de Cinema na Escola, com um conjunto de diretrizes de cores locais muito específicas de acordo com onde for implementado e posteriormente apresentado ao governo. “Impulsionamos muito pouco a prática de produção de cinema para as escolas, então espero que o Plano Nacional possa atuar nesse campo a partir das diretrizes da lei”. Os desafios técnicos e a inclusão digital foram temas recorrentes. Professores e especialistas apontaram a necessidade de investimentos em infraestrutura e formação para garantir que todos os estudantes tenham acesso a uma educação audiovisual de qualidade.
Ao fim do evento, foram elaboradas duas Cartas de Ouro Preto que reúnem balanços e reivindicações das temáticas de Preservação e de Educação. Na carta do Encontro Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais, a ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) chama atenção para para o início da “concretização de aspirações históricas” do setor e relata a feitura e entrega de um modelo de governança à Rede Nacional de Arquivos e Acervos Audiovisuais, a apontar políticas públicas estruturantes que possam garantir o desenvolvimento do setor.
“Enfatizamos a necessidade da criação de uma Câmara Técnica de Preservação Audiovisual na Agência Nacional de Cinema (Ancine). (…) É importante também focar em questões como a necessidade de se estabelecer uma política emergencial com agilidade para ações de financiamento e excepcionalidade para arquivos e acervos em risco por meio de leis de incentivo, assim como a isenção da Condecine para filmes de patrimônio”, registra o documento. A carta ainda reforça a urgência de se considerar a área de preservação na elaboração das políticas relativas à regulamentação do VOD, da Lei de Arquivos e do uso de inteligência artificial e se solidariza as perdas sofridas pelas enchentes no Rio Grande do Sul, situação que ilustra a “necessidade da criação de uma estrutura intergovernamental para o salvamento de acervos”. Leia a íntegra aqui.
Na Carta de Ouro Preto do XVI Fórum da Rede Kino – Rede Latino-Americana de Educação, Cinema e Audiovisual, os professores expuseram metodologias de consultas públicas sobre a implementação de um Programa Nacional de Cinema na Escola e enumeraram uma série de diretrizes e objetivos estratégicos em parceria com o Estado nas suas diversas instâncias. “As contribuições e debates serão sistematizados para o documento final da proposta a ser endereçada ao Ministério da Cultura, ao Ministério da Educação, Ministério de Direitos Humanos, Secretaria de Comunicação e demais representantes do governo implicados no assunto”, registra o documento. Leia a íntegra aqui.
A CineOP, prestes a completar duas décadas de realização, novamente veio como um evento de referência no calendário cultural brasileiro em seus aspectos centrais de preservação, história e educação, mantendo um espaço de troca, aprendizado e construção coletiva. Entre as várias conversas e debates e entre as diversas sessões de cinema promovidas, muitas delas lotando a Praça Tiradentes, ao ar livre, a Mostra mais uma vez cumpre sua vocação de estar a favor da arte e da cultura como catalisadores e transformadores.
É o entendimento da arte como parte dos direitos humanos, como frisou a ministra Cármen Lúcia em sua fala no evento, ao relembrar um antigo professor de filosofia do Direito: “Ele dizia que não temia os animais porque a onça não ‘desonça’, a zebra não ‘dezebra’, mas o humano se desumaniza. E o que ainda reapruma o humano em si mesmo só a arte pode trazer. Todas as outras linguagens, de amor ou de ódio, são momentâneas. A única que é permanente é a que fala ao coração do homem na sua intensidade de luz”. Que venha, então, muita luz quando a CineOP chegar aos seus 20 anos em 2025.