16a CineBH – O desafio de produzir e lançar filmes após a pandemia

No debate “Perspectivas e desafios da coprodução pós-pandemia”, realizado na sexta-feira (24/9) na Casa da Mostra, produtores e distribuidores reunidos na mesa e na plateia apontaram alguns impactos provocados pela proliferação da COVID-19 entre 2020 e começo de 2022 nos trabalhos audiovisuais. Ficou explícito que o grande desafio, agora, é resgatar o hábito das pessoas de irem aos cinemas assistir a filmes fora do circuito de blockbusters e fomentar políticas públicas de incentivo à produção num Brasil cuja área cultural vem sofrendo ataques e boicotes por parte do governo federal.

O Canal Brasil, por exemplo, importante parceiro de diversos filmes brasileiros, tem buscado outras empresas do Grupo Globo para reforçar as possibilidades de aporte nos projetos em que se associa. Amanda Soares, gerente de conteúdo do canal, disse que, por entrarem em contratos minoritários nos filmes, os apoios já não estavam sendo suficientes para viabilizar os trabalhos de vários realizadores. “Isso se deveu à paralisação dos incentivos de governo e, depois, pela pandemia”, revelou. “Passamos a estabelecer  parcerias com Globo Filmes, Telecine, GNT e Globo News para dar aportes mais robustos a determinados tipos de projeto e permitir que eles aconteçam, já que ainda somos um canal de televisão e precisamos de conteúdo”.

Nas salas de exibição comercial, a situação tem sido igualmente dramática. Fernanda Rennó, produtora e distribuidora na Fidalgo Films, contou que alguns de seus projetos de coprodução firmados antes da pandemia explodir somente agora estão sendo devidamente encaminhados. “Temos um filme com a Turquia que deveria ter sido concluído em 2021, mas acaba de entrar em pós-produção e será lançado ano que vem; e outro com o Butão que começou a ser desenvolvido em 2018, precisou interromper tudo e só agora vai filmar. Tudo isso demanda negociação e renegociação”, relatou.

Fernanda também sente o mesmo tipo de aflição na relação com as salas de cinema, já que, segundo ela, os espectadores de várias partes do mundo ainda temem o ambiente fechado da projeção e diminuíram drasticamente seus hábitos culturais. “Isso afeta diretamente filmes como os nossos (que não são superproduções norte-americanas). Alguns filmes importantes tiveram lançamentos adiados na pandemia e vários outros se perderam em exibições de festivais online, então são fatores complicados a serem retomados agora”, alertou.

 

Brasil, pertencente, porém muitas vezes distante

Que o Brasil faz parte da América Latina nem um negacionista é capaz de discordar, mas ainda assim o país muitas vezes parece isolado dentro de seu próprio continente-mãe, e nem sempre isso se deve a algum tipo de injustiça ou incompreensão: de dimensões ditas “continentais”, o Brasil acaba por deixar de lado as nações vizinhas que tanto têm a trocar e interagir. Parte dessa complexa relação foi pauta das discussões na 16a CineBH – Mostra Internacional de Cinema de Belo Horizonte, tanto dentro quanto fora das telas. Entre filmes, debates e conversas informais, percebeu-se, ao longo de uma semana de evento, o quanto o país às vezes parece mais distante da América Latina do que de fato é sua geografia.

O coordenador curatorial da CineBH, Cléber Eduardo apontou essa distância ao dizer que, em termos de internacionalização, bastava um filme de qualquer país da América Latina estar no Brasil que isso significa parte de sua carreira internacional – mas a praxe acaba por ser validar essa condição quando as produções vão circular em mercados da Europa, espécie de porto seguro da legitimação do Terceiro Mundo.

“Devemos nos questionar até onde estamos herdando uma noção europeia, um conceito que não é fundado aqui, de uma ideia do que seja o ‘latino’”, diz o curador. “No nosso processo de seleção dos filmes, cheguei não a uma conclusão, mas ao posicionamento de que sim, somos latinos, e essa latinidade não é necessariamente de uma descendência direta dos ibéricos, que aqui nos fundaram, mas resultado de um processo que envolve outros colonizadores da Europa, envolve os povos originários, envolve a população africana escravizada”.

O crítico, assim, reivindica uma nova forma dos latinos se identificarem – e que ele acredita estar fortemente representada nos filmes exibidos na CineBH em 2022, de países como Venezuela, Cuba, Bolívia, Colômbia, Paraguai e Equador. “Mesmo o filme argentino que estava aqui, o ‘Borom Taxi’, não é falado em espanhol, e sim boa parte em senegalês”, exemplifica, ao citar que a grade exibida no festival buscou detectar que América Latina é essa que o cinema pode mostrar e por quais motivos ela parece menos reconhecida em termos globais do que filmes que flertam com clichês estabelecidos de nações do continente.

Convidada da CineBH, a produtora uruguaia Micaela Solé contou ser bastante comum que o mercado fora da América Latina tente encontrar formas e temáticas específicas para se relacionar com a produção audiovisual daqui. “Existem expectativa de determinados enfoques. Sempre senti que, por produzir em países periféricos, espera-se, vindo de uma movimentação capitalista de circulação de filmes, alguns elementos já familiares e muito usados, como questões envolvendo indígenas, narcotráfico ou violência”, enumera ela, que alerta para os cuidados especialmente de produtores em evitar essas armadilhas e manter a liberdade de se tratar do que quiser, mesmo que contenha essas temáticas, e da forma como se quiser.

O produtor Paulo de Carvalho, colaborador do Brasil CineMundi, concorda e diz ser fundamental que se tente escapar dos lugares-comuns ou, se usá-los, que seja dentro de outras possibilidades de linguagem e abordagem que não as mais usuais e redutoras. “Fiz uma coprodução com a Colômbia e não estou a fim de falar da droga, da violência, dos paramilitares. Mas lá isso são elementos muito presentes, então a gente vê de que forma vai ser apresentado no projeto”, conta.

Para a produtora cubana Yvette Liang, é preciso que os países latino-americanos olhem para si e se aproveitem de suas particularidades e similaridades nas propostas de coprodução. “Devemos fazer filmes entre nós porque temos muitas histórias com as quais nos identificamos em vários aspectos, não só culturalmente, mas historicamente e no nível da humanidade, de como somos, de como nos comportamos. É muito mais natural nos unirmos entre nós e trabalhar juntos para chegar nas audiências”, acredita ela.

 

IMPACTOS DA PANDEMIA

Durante a CineBH, o que ficou também bastante claro é que essas relações se complicaram ainda mais com o impacto da pandemia de COVID-19, que sugou mais de dois anos de trabalhos em desenvolvimento: vários foram paralisados, atrasados, rearranjados ou mesmo adiados ou cancelados. As coproduções – centro das conversas no 13o Brasil CineMundi –, nesse sentido, ficaram ainda mais difíceis e desafiadoras. Considerando ainda a crise da cultura vivida no Brasil pelo menos há seis anos, o cenário fica ainda mais nebuloso.

Ao longo de toda a semana de CineBH, foi discurso comum entre os profissionais convidados a urgência de se retomar políticas públicas de incentivo e desenvolvimento ao audiovisual brasileiro, um dos pilares da economia criativa. A perspectiva de uma guinada no governo federal para os próximos anos foi vista como a possibilidade de não repetir erros do passado e construir novas formas de presença do Estado, inclusive que se adequem às realidades tecnológicas e de produção contemporânea. Pedro Butcher, um dos colaboradores do Brasil CineMundi, chegou a relembrar como se deu a construção das políticas públicas desde o começo dos anos 2000 e o quanto é preciso reordenar a classe, diante dos atuais escombros, e se engajar num recomeço que se articule diante de novas forças políticas.

A circulação dos filmes também foi comentada durante a mostra, em especial o impacto do streaming nos hábitos de consumo e a debandada dos espectadores das salas após a vacinação contra a COVID-19. Pesquisas apontam que o cinema foi a atividade cultural com menor taxa de retorno nos últimos meses, o que, segundo especialistas na CineBH, se reflete em sessões esvaziadas mesmo em grandes multiplexes de shopping. “Virou uma terra improdutiva”, ironiza Lila Foster, colaboradora do Brasil CineMundi. Apenas grandes fenômenos de marketing se tornam sucessos de bilheteria, enquanto os filmes médios ou de baixo orçamento se isolam em salas alternativas e permanecem pouco tempo em cartaz.

Distribuidoras como Vitrine, Embaúba e O2 Play apresentaram exemplos de como tentam driblar o momento difícil, seja se associando a outras empresas de alcance global, como a Mubi, até criando campanhas de divulgação virtual que tornem o filme um programa indispensável. Preços de ingressos, comodismo do streaming e medo do coronavírus foram citados como motivos para o recuo da presença habitual em salas de exibição. “É uma matemática difícil de fechar, se você considera o gasto para se lançar um filme e a quantidade de espectadores que ele faz no circuito atual”, provoca Daniel Queiroz, da Embaúba.

No momento, Queiroz está lidando com um novo tipo de case: a pré-indicação de “Marte Um” ao Oscar de filme internacional. Só 34 salas (de um total de mais de 3.000 pelo país) se interessaram pelo filme há um mês; após a escolha para ser o brasileiro inscrito no prêmio de Hollywood, o interesse dobrou, e o longa de Gabriel Martins chegou a ocupar 69 salas. Ainda números baixíssimos para o potencial do cinema brasileiro, todos reconhecem, mas de grande celebração a considerar a média do que muitos como “Marte Um” enfrentam na difícil batalha por espaço e atenção de espectadores.

Por isso encontros como os realizados no Brasil CineMundi – que pensam o cinema brasileiro do futuro, desde os projetos nascedouros – e uma programação curatorialmente pensada para refletir o presente da América Latina para além das obviedades marcam a CineBH como esse espaço rico e privilegiado de encontros, avanços e perspectivas. Apesar das preocupações apontadas pelos profissionais do audiovisual ao longo de todo o evento, há também a permanente vontade de fazer o cinema brasileiro acontecer cada vez mais e melhor, global e economicamente. Que todos os hermanos se unam nessa empreitada.

Veja a cobertura completa Prodview. 

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