CineOP: Mostra Preservação reflete a preocupação com o patrimônio audiovisual como uma ação política

As conversas sobre o resgate do Super-8 foram ao encontro da Temática Preservação, que uniu os participantes em torno da necessidade de se olhar para os arquivos com ainda mais acuidade. Entre as periferias e o centro do poder econômico, político, cultural, de que forma se quer e se pode construir um patrimônio audiovisual?

Num momento recente tão delicado da política brasileira, no qual as instituições culturais estão sendo colocadas em xeque, o alerta é de que os acervos não podem ser desvalorizados ou inutilizados.

Em carta redigida no final da CineOP, a ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) chamou atenção para “o risco iminente de destruição do patrimônio audiovisual brasileiro” provocado pelo “desmonte do Estado” na extinção do Ministério da Cultura e nos cortes de bolsas de pesquisas e fomento para capacitação profissional. “Encorajamos as ações e políticas regionais de preservação audiovisual que considerem a diversidade”, registra o documento.

Em continuidade com os diálogos entre arquivos e mercado, uma proposição de edições anteriores, e atendendo à demanda de associados da ABPA, duas discussões estarão em questão: a preservação audiovisual frente às tecnologias digitais e as plataformas de difusão de Vídeo sob demanda (VoD).

Definido pelos curadores Ines Aisengart e José Quental, o tema em 2019 foi “A regionalização e a formação do patrimônio audiovisual brasileiro”, com propósito de explicitar os desafios enfrentados por instituições de salvaguarda que não estão no centro das ações públicas federais. Instituições privadas ou ligadas ao Estado, iniciativas particulares, plataformas físicas ou virtuais: trafegando por todas essas frentes, as discussões do Encontro de Arquivos apresentaram cases e experiências em diversas cidades do país, com suas particularidades e contextos regionais (veja abaixo).

Debate este fundamental também a cineastas que se utilizam de materiais de arquivo para seus filmes, como Cláudia Nunes, diretora (junto com Érico Rassi) do média Resplendor, exibido na mostra. Ela atenta para a necessidade urgente de ações tanto de preservação quanto de mediação de acesso aos materiais guardados.

Cláudia conta que realizadores costumam enfrentar obstáculos burocráticos, familiares e financeiros na busca pelos acervos. “A gente às vezes tem dificuldade com quem detém as imagens e também com empresas que cobram muito caro pela utilização de poucos segundos, às vezes com valores que permitiriam fazer um outro filme”, diz ela.

Alguns casos de sucesso foram apresentados, como o Canal Thomaz Farkas, capitaneado pelo neto do produtor, Tom Farkas. “Foi preciso atualizarmos os suportes digitais do acervo para evitar defasagem e consequente perda do acesso”, conta, em relação ao cuidado que precisou ter na preservação de uma série de filmes realizados entre o final dos anos 1960 e meados dos 70.

A presença da francesa Cécile Petit-Vallaud, diretora da Cinemateca da Bretanha, ampliou o entendimento da preservação como uma preocupação mundial. Ela falou sobre a experiência de cuidar de um dos acervos mais importantes da Europa e das iniciativas de colocar o material à mostra, em projetos de difusão – entre eles, a disponibilização de 6.000 filmes através de plataformas digitais. No caso do Brasil, que ainda encontra dificuldades para ampliar o acesso a longas, médias, curtas e materiais de arquivo, algumas iniciativas foram mostradas, como o Spcine Play, que mantém em streaming gratuito dezenas de filmes brasileiros.

Para Hernani Heffner, conservador-chefe da Cinemateca do MAM-RJ, a difusão no país precisa encarar ao menos dois desafios: “Um é o elitismo do cânone, que tende a repetir os mesmos tipos de filmes e realizadores já legitimados pela história, deixando à margem trabalhos importantes que não seguiram os mesmos tipos de padrões legitimados; outro é a propalada ‘morte do cinema’, simbolizada pelas infinitas novas possibilidades de consumo do audiovisual em tempos de streaming e plataformas móveis”.

O entendimento é de que a regionalização, novamente no centro dos debates, é um caminho que depende muito das formas de difusão, para que filmes e arquivos sejam conhecidos para além de seus territórios e para a compreensão de seus recortes de tempo e espaço, de história e geografia.

Órgãos como o MIS-PR (Museu da Imagem e do Som do Paraná), MIS-Campinas, Cinemateca Capitólio (Porto Alegre), além do próprio MAM-RJ, apresentaram suas formas de trabalho e as tentativas de atraírem públicos renovados. A conclusão, ao menos por ora, foi a de que, apesar do péssimo momento pelo qual passa o Brasil no cenário econômico e cultural, é preciso acreditar no interesse do público em potencial.

“Você precisa criar novas experiências, fazer o espectador querer ir conhecer aquilo que você está mostrando”, acredita Marcus Mello, um dos idealizadores da Cinemateca Capitólio. Por sua vez, o cineasta mineiro Sylvio Lanna defendeu o que chama de “difusão caligráfica”, que ele define como “pequenos gestos de visibilidade” que se aproveitam das novas tecnologias. “Hoje você pega isso aqui (telefone celular) e faz o seu filminho e mostra o seu filminho. Cada um de nós tem poder de fazer a sua difusão dentro do seu contexto”, afirma.

 

Estudos de Caso – Projetos em torno da preservação

Além dos estudos já citados acima, com a inauguração de um novo formato, de apresentações sucintas de estudos de caso, o encontro deu visibilidade ainda a três importantes projetos em torno do patrimônio audiovisual:

  • Dibrarq – Diretório Brasileiro de Arquivos, é uma plataforma de informações sobre acervos acessíveis ao público, para otimizar pesquisas e subsidiar ações em prol dos arquivos no Brasil. Para fazer parte é preciso dispor de um código de entidade custodiadora (Codearq) junto ao Conselho Nacional de Arquivos (Conarq), para obter o código, acesse: http://conarq.arquivonacional.gov.br/formul%C3%A1rio-para-cadastro.html.
  • IASA-TC 03 – Publicado pela primeira vez em 1997, o documento é reconhecido como referencia na área de preservação audiovisual. Revisto e ampliado, recebeu tradução para o português por meio da ABPA (Associação Brasileira de Preservação Audiovisual) e é um documento referencial para instituições e profissionais de acervo.
  • BFVPP (Brasilian Film and Video Preservation Projetc) é um projeto de preservação de filmes e vídeos brasileiros lançado em 2017 para analisar o estado físico dos trabalhos e gerar matrizes digitais para documentação da produção.

 

Filmes apresentados na Mostra Preservação

Três sessões compuseram a programação dentro desse eixo: a apresentação do longa Rio da Dúvida, a exibição de cinco curtas, além de outros da Cinèmathéque de Bretagne.

 

*Longa:

  • Rio da Dúvida (2018) – Em continuidade com os diálogos entre arquivos e mercado, uma proposição de edições anteriores, e atendendo à demanda de associados da ABPA, duas discussões estarão em questão: a preservação audiovisual frente às tecnologias digitais e as plataformas de difusão de Vídeo sob demanda (VoD). (Direção: Joel Pizzini).

 

*Curtas:

  • Feira da Banana (1972/73) – Na margem esquerda do Rio Jaguaribe, que atravessa a cidade de Nazaré, tem lugar todas as quartas-feiras a tradicional Feira da Banana. Nesse dia da semana, Nazaré se transforma num entreposto de banana de todo o Recôncavo. (Direção: Guido Araújo).
  • Jornal do Sertão (1969/70) – Através dos improvisos dos cantores-repentistas e da literatura de cordel, uma visão de como essa forma cultural se transforma num verdadeiro jornal do sertão. (Direção: Geraldo Sarno).
  • Padre Cícero (1972) – Em 1925, a inauguração da estátua de Padre Cícero, com a presença do mitológico personagem. Manifestações contemporâneas da fé popular no mesmo local, com fiéis em romaria, ex-votos. A personalidade de Padre Cícero como administrador, líder político e religioso da cidade de Juazeiro do Norte, no Ceará. “O famoso ‘padim’ de milhares de fiéis. (Direção: Paulo Gil Soares, Sérgio Muniz e Geraldo sarno).
  • Paraíso, Juarez (1971) – O Pintor JUAREZ PARAÍSO descreve a montagem de painéis na entrado do Cinema Tupi, em Salvador, explicando o seu significado e justifica suas posições em relação à comunicação entre os homens e as mulheres. Essa decoração foi inteiramente destruida por ocasião da venda do cinema. (Direção Thomaz Farkas).
  • Um a um (1976) – O funcionamento de um dos últimos armazéns de catação manual de café, na cidade de Santos/SP. (Direção: Sérgio Muniz).

 

*Curtas Cinemateca da Bretanha

  • África 50 (1949) – África 50 é o primeiro filme anticolonialista francês. Surgiu como uma encomenda do Ministério da Educação para mostrar o trabalho educacional realizado nas colônias francesas. Mas o diretor René Vautier, então com 21 anos de idade, preferiu testemunhar a realidade: a falta de professores e médicos, os crimes cometidos pelo exército francês, a exploração da população local… (Direção: René Vautier).
  • História do Corpo (1974) – Michel Body quebrou o pé. Ele está entediado em casa. Decide então fazer um filme sobre Michel Body com o pé quebrado… (Direção: Michel Body).
  • Raspadores de Oceano (1952) – Entre julho e dezembro de 1952, Anita Conti navegou em direção à ilha de Terra Nova, na costa do Canadá, com 60 homens a bordo de um barco pesqueiro como observadora e testemunha da grande pesca de bacalhau. (Direção: Anita Conti).
  • Rio Incomum (1960/70) – Uma edição de filmes amadores captados no Rio de Janeiro por marinheiros e viajantes Bretões no porta-helicópteros Jeanne d’Arc. (Direção: Cinemateca da Bretanha).
  • Terra dos Pescadores (1910) – Mulheres bretãs, com seus penteados peculiares, esperam por seus maridos, com a esperança de que eles voltarão da pesca, nas rochas da costa da Bretanha. *Mais antigo filme da Cinemateca da Bretanha.

Foto: Nereu Jr/Universo Produção

 

[VEJA A COBERTURA COMPLETA DO CINEOP 2019]

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